4 de set. de 2008

Por que vamos ao Supremo?

por Samantha Buglione

Nos últimos anos, o perfil das demandas do Supremo Tribunal Federal (STF) mudou. Os ministros e ministras não tratam mais apenas de questões de ordem burocrática processual, mas de temas políticos fundamentais. Sinto em dizer, para aqueles que se incomodam com isso, que é essa mesmo a função do STF, ao menos desde 1988, com a Constituição Federal.

Células-tronco, Raposa Serra do Sol, anencefalia, prisão civil em casos de alienação fiduciária (quando o alienante está na condição de depositário fiel do bem) são alguns exemplos da pauta. Em todas elas, em alguma medida, está o tema da vida, da autonomia, dos interesses econômicos. Se as decisões virão para o bem ou para o mal, o importante é que virão. Mas virem do STF é sintomático de algo típico da cultura brasileira: não gostamos do conflito.

O conflito é um sintoma de acordos válidos quando ocorrem em democracias constitucionais. Isso porque em democracias constitucionais, diante da norma da liberdade de crença e pensamento, estabelece-se que não há um monopólio interpretativo nem sobre os fenômenos nem sobre as crenças nem sobre as normas. Isso não significa que não seja necessário fundamentar ou argumentar os juízos prescritivos, as normas válidas para todos, tampouco que não seja possível falar em valores universais.

Significa, simplesmente, que a existência de conflitos demarca um campo democrático. Um exemplo disso está no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, que estabelece o dever de fundamentar as decisões judiciais, bem como o artigo 37, que fala dos princípios da administração pública, o qual possibilitou a edição da lei nº 9.784/99, na qual a aplicação das normas exige fundamentação.Isso só aparece como fundamento constitucional explícito a partir da Constituição de 1988. Com isso, os princípios morais devem ser integrados entre si e especificados e balanceados nas deliberações públicas. Eles não estão ausentes do sistema, mas devem ser explicados sob o risco de se ferir a imparcialidade, logo, o igual reconhecimento de interesses. Se as regras democráticas são respeitadas, diálogos são possíveis e conflitos, necessários.

Porém, no Brasil de hoje, parece que o debate fundamental não está no Congresso ou no Legislativo como um todo, exatamente porque nesse campo os arranjos políticos impedem o saudável conflito democrático. Parece não haver espaço para o debate claro, honesto, de idéias e interesses. Tudo se ajeita no cafezinho (ou no uísque). O espaço público é o teatro que dá um verniz de legitimidade democrática para as decisões que já foram negociadas, valoradas e datadas anteriormente.

A Moeda Verde é um bom exemplo. São tantas as negociações que, neste caso específico, não ficarei espantada se elas invadirem inclusive outras searas do Estado. Outro exemplo é o Código Estadual de Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina. Depois de uma vasta discussão junto à sociedade e técnicos, o que foi apresentado no Legislativo é representativo de um outro discurso, nada democrático. Novamente, o verniz de interesse público.

O problema desses arranjos é o engessamento, a impossibilidade de deliberar de forma livre sobre o que realmente importa. Aí, a única alternativa é ir ao Poder Judiciário e rezar, sim, rezar, que lá a imparcialidade e a autonomia ainda estejam garantidas. Afinal, em tempos de negociações tão envolventes, é preciso ter fé que parte do Estado se mantenha ilesa à sedução desse tipo de poder.

( buglione@antigona.org.br )
* Professora de direito e doutora em ciências humanas

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