27 de ago. de 2008

Anencefalia de volta

Artigo publicado na Folha de São Paulo - 27/08/2008

O assunto, felizmente, volta à pauta do Supremo Tribunal Federal, quatro anos após a liminar do ministro Marco Aurélio de Mello, que permitiu a interrupção de uma gestação com feto anencéfalo.Nesse ínterim, tramitou no Congresso Nacional, mas ainda não veio a plenário, um projeto de lei (PL 4.834/04) que amplia o aborto legal especificamente para essa circunstância.

A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente de fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. Embora a diminuição do ácido fólico materno esteja associada ao aumento da incidência -daí sua maior freqüência nos grupos sociais menos favorecidos-, existem muitos outros fatores causais, inclusive genéticos. O Brasil é um país com incidência alta, o 4º do mundo, com 8,6 casos para cada 10 mil nascidos vivos, e um dos poucos onde a interrupção não é autorizada.

O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas, que contém globos oculares salientes. O cérebro remanescente encontra-se exposto, e o tronco cerebral é deformado.

Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, existem dois diagnósticos fetais que se fazem com 100% de segurança: óbito fatal e anencefalia, esta última a partir da 12ª semana de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula. Não é necessária a realização de exames invasivos, apesar dos níveis de alfa-fetoproteína aumentados no líqüido amniótico obtido por amniocentese. A maioria dos anencéfalos sobrevivem dias após o nascimento. Quando a etiologia é brida amniótica, podem sobreviver um pouco mais.

As gestações de anencéfalos causam, com maior freqüência, patologias maternas, como hipertensão e hidrâmnio (excesso de líqüido amniótico), pelas alterações do processo fetal de deglutição, levando as mães a percorrer uma gravidez de risco elevado.

A manutenção da legislação atual, que precede em muitas décadas os avanços científicos que garantem o diagnóstico de certeza da anencefalia, obriga as mulheres a levar adiante uma gestação que contém feto com morte cerebral e certeza de impossibilidade de sobrevida ao nascer.

Para essas mães, a alegria de pensar em berço e enxoval será substituída pela angústia de preparar vestes mortuárias e sepultamento. Para alguns desses casos, se tem obtido, nos últimos anos, um número crescente de ordens judiciais de interrupção da gravidez. Em 2001, Thomaz Gollop relatou 3.000 casos e, hoje, acredita-se que essas ordens judiciais ultrapassem 5.000.

Além de perversa, a manutenção do status quo é hipócrita, pois, neste país, praticam-se mais de 1 milhão de abortos ilegais por ano, que variam em conforto e segurança segundo os recursos despendidos, de tal modo que os bem aquinhoados podem ter sua gravidez interrompida com baixíssimo risco e absoluto conforto.

Por último, devo mencionar, a bem da verdade, que existe, além da questão religiosa, uma razão ética e generosa para levar uma gestação desses fetos até o final: a doação de seus órgãos. Entretanto, é uma opção muito complexa -até por outras anomalias associadas, inclusive cardíacas-, que, na realidade, jamais foi utilizada no nosso país.

A idéia contida no projeto de lei que tramita no Congresso, assim como foi a da liminar de 2004, não é obrigar a mulher a interromper a sua gravidez, mas permitir-lhe o ato, se desejado e dentro de condições específicas, respeitando inclusive quem, por credo religioso ou outras razões, deseje levar a gravidez até o fim. Não quero entrar nas opções religiosas ou morais de cada um -que respeito muito-, tampouco discutir semântica, porém, essa interrupção não deveria ser cunhada de aborto, pois esse é um termo para designar a interrupção de uma potencialidade de vida. No caso, como já há morte cerebral pela ausência do cérebro, não há potencialidade de vida.

A discussão é dolorosa, porém, necessária. Com o avanço acelerado da ciência e da tecnologia, temos de refletir continuamente sobre inúmeros assuntos desse tipo, estabelecendo, com reflexão profunda e informada, balizamentos éticos, morais e legais para cada um deles. Os argumentos religiosos, que são tão importantes quanto os demais, dizem respeito à consciência e à decisão de cada um e devem ser absolutamente respeitados, mas não podem ser impostos aos demais.

Por isso, é importante dar às mulheres e a seus companheiros o direito de optar de modo informado.

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI, 73, é deputado federal (DEM-SP), professor emérito da USP e da Unicamp e membro da Academia Nacional de Medicina. Foi secretário de Ensino Superior (governo Serra), da Saúde (governo Quércia) e da Educação (governo Montoro) do Estado de São Paulo, reitor da Unicamp e presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia.

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