O castigo é o destino provável de quase 10 mil mulheres envolvidas em um histórico caso brasileiro. Não se trata de um caso no qual estão em investigação os problemas envolvendo as dificuldades de acesso à saúde, de obtenção de métodos contraceptivos ou as cotidianas denúncias de violência doméstica. É um caso envolvendo aborto voluntário. Com base em prontuários médicos, exames de gravidez e sem qualquer flagrante, exatamente 9.896 mulheres, da cidade de Campo Grande, praticamente 40% da população carcerária feminina do Brasil, estão na fila para serem interrogadas, e possivelmente indiciadas, por aborto.
O problema não é o Estado fazer o que deve fazer, mas fazer o que deve fazer quando há violação a direito - agindo. Explico: a punição pela prática do aborto no Brasil é uma notória violação a um vasto leque de direitos fundamentais. Algo que começa pelos precários serviços de acesso à saúde e informação qualificada. Não são poucas as denúncias de hospitais que se negam a oferecer adequadamente métodos contraceptivos ou projetos de lei que impedem o acesso a outros tantos, como a pílula contraceptiva de emergência.
Informação qualificada é política de educação sexual em escolas. Enquanto diferentes atores políticos obstaculizarem políticas sérias de educação nas escolas, o quadro de abortos voluntários não irá diminuir e seguirá aumentando entre as jovens. Por certo, quem estará na lista de Campo Grande, não será o menino, mas a menina que suporta o ônus e a solidão da culpa e do crime. Esse abandono onera, fragiliza e tortura mulheres e meninas.
Optar pela liberdade, sendo mulher, torna-se, não mais das vezes, um castigo. É o castigo de denunciar a violência doméstica e ser responsabilizada por ela, o castigo da autonomia em gerenciar a reprodução e ser julgada por isso, o olhar de repreensão da mulher que não escolhe a maternidade. A liberdade é um ônus.
O outro direito violado é o da liberdade de crença e pensamento. A proibição do aborto voluntário é uma imposição de uma determinada crença moral. Obrigando pessoas que não compartilham de uma mesma idéia a comungarem dela.
Sinto em repetir, mas estamos sozinhos nessa. A ciência pouco informa a respeito. O consenso é de que a vida começou há milhares de anos, apenas isso. Nem a concepção é um dado exato. Penetração do espermatozóide no óvulo e concepção são coisas diferentes e também ocorrem em momentos diferentes, então, nem adianta advogar que a vida humana começa na concepção, porque concepção é processo. Não tem o "dia D", com hora exata. Em realidade, poucas coisas no mundo são passíveis de serem datadas com exatidão.
O último problema da criminalização do aborto que merece ser destacado aqui é a sua notória discriminação de classe social. Mulher rica faz aborto no exterior e transpõe, inclusive, o mundo do crime; ou, faz de forma criminosa na clínica clandestina, mas igualmente sem risco à sua saúde. Mulher pobre é criminosa e corre o risco de morrer.
O problema de Campo Grande é o circo dos horrores, as violações a pressupostos básicos de legalidade, como violação ao sigilo do prontuário médico - você não deve estar sabendo, mas o juiz do caso deixou todos os prontuários, de todas as mulheres, à disposição para quem quisesse ver. Há, ainda, a fragilidade das provas, mas pior, é o tradicional argumento da burocracia, que tudo justifica e banaliza o mal, mas, sempre revestido de bem e em nome da vida.
A ilegalidade do aborto voluntário impõe um estado de exceção no qual direitos não se realizam por razões de uma ordem moral específica ou econômica. Provocando, assim, mortes desnecessárias, discriminação, tortura, violação à privacidade, culpa, sofrimento.
Não há, hoje em dia, em contextos de democracias constitucionais, o monopólio interpretativo sobre o bem, como também não há como determinar o momento exato do início da vida humana. O que há é um acordo sobre ser a liberdade um valor a ser preservado. O que não podemos permitir é que esse direito exista, apenas, para homens e para mulheres de terminada classe social e etnia.
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