A pretexto de defender a vida, uma exposição segue pelas capitais do país, geralmente em espaços onde circulam famílias, estudantes e casais de namorados: os shoppingcenters. São grandes banners com fotografias de mulheres grávidas, frases sentimentalistas elaboradas no intuito de exprimir o que seriam as impressões de fetos ao longo das primeiras semanas de gestação, rostos de bebês loiros e rechonchudos, dignos de rótulo dos produtos infantis e imagens da família mononuclear - pai, mãe e filho - com o atributo simbólico de ostentarem o fenótipo branco caucasiano, como numautêntico comercial de margarina que intercala um dos blocos da novela das oito - queservem ao convencimento do público que ali circula à defesa de um posicionamentocontrário ao aborto.
No entanto, o grande "trunfo" ideológico da exposição - que advém da campanha Brasil Sem Aborto, promovida por uma frente de representantes de facções religiosasconservadoras - parte da sedução voyeurística e do apelo ao grotesco, dois cânones dacomunicação panfletária populista e da argumentação demagógica. Trata-se de uma série de imagens de supostos fetos abortados - em condições variadas - exibidas no interior de grandes caixas retangulares brancas, acessíveis aos olhos por meio de um buraco estreito, com avisos solenes em preto e vermelho de que ali se encontra conteúdo não apropriado para menores de dezoito anos.
É uma manipulação panfletária, antes de qualquer coisa, porque os organizadores apresentam, ali, como trunfo argumentativo e exemplo insofismável da crueldade das mulheres que escolhem abortar, imagens distorcidas, de qualidade técnica duvidosa e péssima visualização, além de completamente descontextualizadas a respeito de sua proveniência ? sem crédito, citação ou menção explícita a qualquer fonte, muito menos alguma que se possa supor idônea - resvalando para um discurso que, além de misógino, é fundamentalista e elementar.
Apoiando-se no dogma de que há vida desde a concepção, ignoram, intencionalmente, o debate político sobre o princípio de laicidadedo estado, que defende a liberdade democrática dos sujeitos, independente de convicção religiosa. Seu conteúdo é populista, pois se vale da espetacularização da morte, numa abordagem de extremo e gratuito mau gosto, voltada para a sensibilização e mobilização dasociedade em torno da defesa de um ponto de vista, por meio de uma postura superficial e negligente. Um tema polêmico como este merece ser discutido de forma ampla,principalmente porque os casos de abortamento - cerca de um milhão e meio ao ano, no Brasil, de acordo com o SUS - são um problema de saúde pública que diz respeito diretamente à vida das mulheres.
Uma exposição acerca do aborto que exerce o ventriloquismo - atribuindo vozese sensações a fetos recém concebidos, captando emoções que as mais avançadas correntes científicas jamais ousariam cogitar - e desconsidera a realidade das mulheres, que são as protagonistas desta situação, preterindo qualquer dado ou informação quesitue suas condições sociais e sua autonomia, além de omitir que uma gestação decorre, necessariamente, de um ato comum a mulheres e homens - estes, completamenteeximidos do debate - é uma ficção demagógica porque induz a população a posicionar-se diante de um contexto falso, apresentado de forma a aparentar coerente.
Além disso, uma pesquisa da Unb e Uerj acaba de identificar que a maioria dasmulheres que abortam no Brasil são casadas, católicas, tem filhos, escolaridade eemprego. Tal realidade reforça a necessidade de que o aborto seja discutido em nossodia-a-dia, levado às comunidades, às salas de aula, aos shoppings centers e mesas de jantar das famílias. Mas não o aborto ficcional, destas mulheres etéreas que não sabemos como nem porque o fazem. As que abortam não são as outras. Somos nós, todas e todos. É a partir de nós, das nossas vozes, que essa discussão precisa acontecer. Não espreitada através da estreiteza e simulacro de um buraco.
* Dayane Dantas é educadora e pesquisadora do Coletivo Leila Diniz
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