18 de mar. de 2009

Meninas violentadas, pessoas excomungadas

A CNBB invocou a hipocrisia político-religiosa para colocar panos quentes no assunto. No entanto, o Brasil e o mundo assistiram estarrecidos às sucessivas declarações feitas pela cúpula clerical católica sobre o estupro e conseqüente interrupção da gravidez de uma criança de nove anos em Pernambuco. O espanto decorreu não só da crueldade da violência praticada pelo padrasto da menina, ou da excomunhão perpetrada pelo Arcebispo de Recife e Olinda, mas também, da reação da hierarquia da Igreja Católica que, ao desconsiderar a gravidade da violência, tentou impedir o acesso da criança ao aborto legal, um direito concebido às mulheres em casos de violência sexual e risco de vida.

A opinião de que "a mulher que interrompe uma gestação decorrente de um estupro é mais cruel do que seu estuprador" ecoa fortemente na concepção dos grupos conservadores que sistematicamente tentam coagir as mulheres do exercício de sua autonomia.

Tal idéia está presente, por exemplo, na justificativa de um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional: o bolsa-estupro (PL 1.763/2007). Se entrar em vigor, a proposta destinará um salário mínimo, até que o/a filho/a complete 18 anos, para a mulher que decida não interromper a gravidez resultante de um estupro, crime considerado hediondo pela legislação brasileira.

O suposto benefício, que recebeu a alcunha de Bolsa Estupro dentro dos movimentos feministas, é bastante adequado para essa análise. Com o claro intuito de constranger mulheres que querem exercer seu direito ao aborto legal em caso de gestação decorrente de estupro, os autores da proposta, o deputado Henrique Afonso (PT-AC) e a ex-deputada Jusmari Oliveira (PR-BA), iniciam sua argumentação afirmando que "punir a criança com a morte por causa do crime de seu pai é uma injustiça monstruosa. Mais monstruosa que o próprio estupro. Será justo que a mãe faça com o bebê o que nem o estuprador ousou fazer com ela: matá-la?".

Assim como esse questionamento, todo o discurso em defesa do projeto sequer considera a mulher como algo mais que uma simples peça na engrenagem do ato sexual e da reprodução. Trata-se de uma versão do século 21 para o lema "Estupra, mas não mata", eternizado nas infelizes palavras de Paulo Maluf na década de 1980. Mas a ofensiva conservadora não acaba aí. Muitas outras propostas seguem a mesma linha, tais como o PL 2.504/2007, do ex-deputado Walter Brito Neto (PRB-PB), que obriga o cadastro das gravidezes em todas as unidades de saúde, tratando-se de um claro exemplo de controle sobre a autonomia reprodutiva das mulheres, buscando como objetivo final a criminalização de mulheres que tenham praticado aborto. Um dos ápices da ofensiva conservadora veio ao final de 2008, quando o então presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia, assinou a criação de uma CPI do aborto, já conhecida como CPI da Fogueira, que tem intuito policialesco e inquisitório.

O que a história da criança pernambucana tem a ver com essas propostas do Congresso Nacional? Exemplificam um pensamento anti-direitos que desqualifica o sujeito mulher como auto-determinante dos rumos de sua vida. O não reconhecimento de sermos porta-vozes de nossas decisões é recorrente na sociedade machista e misógina (não amiga das mulheres) e sustenta o modelo patriarcal que não considera as mulheres como seres humanos autônomos e portadores de direitos.

Não reconhecer os graves efeitos físicos e psicológicos do estupro e a crueldade dessa violência sofrida por mulheres e meninas, inclusive dentro de suas próprias casas; impedir que o direito ao aborto legal seja implementado nos serviços públicos de saúde por meio da estratégia moral da excomunhão e defender esses projetos de lei e a instalação da CPI da Fogueira são iniciativas que legitimam e institucionalizam a tortura sobre as mulheres e a negligência do Estado brasileiro.

Para enfrentar o problema, o Estado deve oferecer segurança para coibir os crimes, punir os agressores e acolher as vítimas, em qualquer que seja a sua decisão, a de interromper ou não uma gravidez. Essa banalização da violência e a valorização da concepção a qualquer custo mostram que, para a hierarquia da Igreja Católica e alguns/as parlamentares, os direitos das mulheres não são direitos humanos.

Os casos recentes de estupro de meninas noticiados pelos jornais bem como o conteúdo das propostas em discussão no Parlamento são emblemáticos. A sociedade brasileira não pode permitir que as mulheres sejam tratadas como cidadãs de segunda categoria, sem identidade, sem voz, sem direitos.

No mês de março, em que se comemora o dia Internacional das Mulheres, as denúncias de violações dos direitos das mulheres convocam a cidadania a resgatar o significado da luta por respeito, liberdade e autonomia. Muito mais que receber flores, as mulheres exigem do Congresso Nacional respeito aos seus direitos e a rejeição desses retrocessos legislativos.

Natalia Mori é diretora colegiada e Kauara Rodrigues é assesora da Saúde Reprodutiva do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)

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