São conhecidas as alarmantes estatísticas que apontam o Brasil como um dos “campeões mundiais’ de parto cesáreo: 43% do total de partos em 2007 (DATASUS) quando a OMS sugere, no máximo, 15%. Neste contexto, é muito oportuna a campanha que o Ministério da Saúde recentemente lançou para incentivar o parto normal. Ela prevê que mulheres que optem pelo parto normal sejam beneficiadas com quarto individual com banheiro, acompanhante de sua escolha durante o procedimento obstétrico e no período de internação pós-parto, alojamento conjunto com seu recém-nascido. De fato, são medidas que tendem a beneficiar as mulheres não só em termos de saúde, mas de bem estar familiar e psicológico.
Mas já existem iniciativas como a “Lei do acompanhante” ou o “Programa Canguru”. Infelizmente, o Ministério não lançou nada de novo. No mínimo, fez um alarde estratégico sobre um setor que está desprotegido. Essa campanha oferece “benefícios” (que deveriam ser “direitos”) exclusivamente para as mulheres. Mas seriam esses benefícios suficientes para convencer uma mulher de que o parto normal é uma boa opção para ela e seu filho? Os incentivos devem se dirigir somente às mulheres? A partir daqui, gostaria de tecer breves comentários sobre a atual cultura obstétrica brasileira.
Tenho acompanhado de perto as minhas amigas, na casa dos 30 anos, que hoje estão tendo seus filhos. De início, a maior parte queria parir normalmente. Porém, quando a gestação chegou ao final, “o bebê foi diagnosticado na posição errada”, “o bebê estava envolto com circular de cordão”, “não havia abertura e dilatação”, “o dia marcado havia passado há muito”, “o bebê era muito grande”, “já havia uma cesárea anterior e seria bom aproveitar o corte já feito”, “o parto vaginal não é indicado para trintonas”, etc. Por trás de tantas explicações, o que se observa, na verdade, é uma incrível e crescente inflação de riscos obstétricos.
Estes riscos ficam ainda maiores quando a disponibilidade – seja da mulher, seja dos profissionais de saúde, marido ou família – decresce. Pode-se notar pouca disponibilidade em termos de agenda dos médicos e enfermeiros (que, muitas vezes, preferem agendar os partos atendidos e não comprometer suas férias e finais de semanas) ou da própria família (muitos homens preferem ter seus filhos na segunda-feira para poder gozar da licença durante dias úteis). A disponibilidade também decresce diante de determinadas circunstâncias urbanas (em cidades violentas tem-se evitado partos noturnos); decresce em termos de espaço e recursos (a escassez de leitos hospitalares precisa ser compensada com a alta rotatividade das pacientes), ou ainda em termos corporais (muitas mulheres não querem “estragar ou enfeitar seu parque de diversões”, nem sentir muita dor, ou mesmo duvidam que tenham resistência física suficiente para empurrar e agüentar um procedimento muito longo).
Risco gera indisponibilidade e vice-versa. A cultura do risco que temos criado no Brasil – em que se tem medo de tudo – é o que irá desafiar frontalmente a campanha do Ministério. Comparado com a realidade de nossas avós parideiras, um parto normal hoje em dia envolve muitíssimos “riscos” e poucas são as pessoas que conseguem desconstruir ou contorná-los. Mulheres que optam por ter parto normal, no hospital ou em casa, são vistas com estranhamento, quase desconfiança sobre sua estabilidade mental. São criticadas por “colocar a vida do bebê em risco”, como se estivessem sendo irresponsáveis.
Com essa cultura do risco o parto normal não cabe no Brasil de hoje. Por isso, para que essa bela campanha ministerial tenha algum sucesso, não é preciso apenas mudar a arquitetura dos hospitais ou a destinação orçamentária. As mulheres precisam acreditar na capacidade de seus corpos. Os médicos precisam ser mais bem qualificados (muitos saem da faculdade sem ter atendido um parto sequer!). Práticas já conhecidas precisam voltar à tona.
É bom lembrar que todas as práticas sugeridas pelo Ministério da Saúde já são largamente utilizadas pelas parteiras: tempo generoso para aguardar a dilatação, privacidade, acompanhante quando desejado, massagem e inversão intra-uterina do bebê, desenlaçamento do cordão umbilical durante o parto, critério para evitar episeotomia e enema, alojamento imediato com o recém-nascido, são praticas adotadas por parteiras mais experientes país afora. Precisamos, portanto, mudar a cultura obstétrica do medo que se espalhou entre nós. Rever o que temos incluído sob o guarda-chuva “risco” é um bom começo para desestimular as cesarianas desnecessárias e revalorizar o parto normal.
Soraya Fleischer, antropóloga do CFEMEA, especial para o Mulheres de Olho
8 de ago. de 2008
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